Posicionamento contra o uso de aversivos no treinamento de animais

Várias técnicas e ferramentas de treinamento são utilizadas há várias décadas em animais, na educação e no treino, com o objetivo de educá-los para uma melhor convivência com a família humana, para a prática de atividades esportivas e para ensinar aos animais de trabalho, incluindo os animais de assistência, tarefas específicas. As mesmas técnicas e ferramentas são também utilizadas na terapia de modificação comportamental de animais que demonstram alterações comportamentais resultantes de alterações emocionais e/ou clínicas. Contudo, nas últimas décadas, o uso dos métodos de treinamento vem sendo tema de estudos científicos numerosos, que comprovaram os efeitos deletérios na qualidade de vida e bem-estar de métodos baseados em coerção, força, punição e ferramentas aversivas. Ao mesmo tempo, as evidências científicas apontam para a eficiência e benefícios dos métodos baseados em reforço positivo, como a oferta de uma recompensa diante dos comportamentos que se deseja aumentar a frequência. Sendo assim, a Associação Brasileira de Medicina Veterinária Comportamental (ABMeVeC) se posiciona contra o uso de métodos coercivos e ferramentas aversivas para o treinamento de animais.

O treino utilizando métodos coercivos são aqueles que aplicam ferramentas e métodos que podem prejudicar a saúde física e mental do animal.23 Esses métodos podem ser abordados por duas maneiras: reforço negativo e punição positiva. O reforço negativo se caracteriza pelo uso de um estímulo aversivo que, ao ser removido, após uma resposta, tem por efeito aumentar a probabilidade de ocorrência futura de um comportamento almejado. A punição positiva é definida pelo uso de estímulos desagradáveis adicionados diante de uma resposta que reduz a probabilidade de ocorrência futura do comportamento indesejado.16

Pesquisas evidenciam que a utilização de técnicas coercivas, para modificação comportamental dos animais, pode levar a consequências prejudiciais que incluem reações de esquiva e afastamento do seu dono, apatia, medo, ansiedade, agressividade, redução da atenção, baixa performance e aumento de bioindicadores de estresse,3, 14,1, 8,11 comprometendo o bem-estar dos animais e sua relação com a sociedade. 20,22, 25 Essas conclusões já estão muito difundidas e diversos países de primeiro mundo começaram a abolir esse tipo de ferramenta na educação animal. 26

Em se tratando da punição positiva, observam-se respostas comportamentais de fuga ou esquiva (resposta emocionais), desamparo aprendido ou por contracontrole, que são comportamentos visando contra-ataques em relação à fonte punidora, como por exemplo,

o aumento da agressão 6, 17 e 7. Já quanto ao uso de reforço negativo, sabe-se que o mesmo pode gerar atrasos na aprendizagem e na resposta de fuga 6, além do potencial de sobrepor estresse agudo em animais com histórico de estresse crônico.16 Ambos os métodos também podem promover nos animais comportamentos sugestivos de estresse, medo, ansiedade, e ainda o aumento de agressão contra indivíduos da mesma espécie e integrantes da família.7 Já os métodos com base no reforço positivo incentivam, de forma segura, escolhas saudáveis por parte do animal, promovem uma visão mais otimista diante de cenários25 e amplia a sensação de controle que o animal tem sobre sua vida e ambiente, o que traz benefícios como fortalecimento da resiliência e equilíbrio emocional.

O reposicionamento dos autores atuais em relação aos animais não humanos se deve ao questionamento sobre a existência de sofrimento nesses seres. Em 1965, a partir do Comitê de Brambell, realizado na Inglaterra, a preocupação com o bem-estar animal cresceu e se aperfeiçoou ao longo dos anos. O marco histórico nesse novo movimento foi o reconhecimento da consciência animal por meio de uma série de estudos e modelos, como a Declaração de Cambridge, em 2012; a reformulação do Modelo dos Cinco Domínios do Bem-Estar Animal, em 2017 (originalmente proposto por Mellor&Reid em 1994), que tornaram possível avaliar experiências positivas e negativas vividas pelos animais.9

Apesar das novas diretrizes estabelecidas, a mídia televisiva ainda se manifesta como uma forte influenciadora no incentivo de métodos coercivos, assim como algumas linhas de trabalho do treinamento animal. Muito dessa influência surge a partir da difusão da terminologia “dominância”, principalmente em se tratando de cães. A partir da visão da teoria da dominância, o tutor e outros indivíduos que mantenham relações com o animal devem se colocar em uma suposta posição mais elevada do ranking social, a partir da restrição de algumas atividades com o animal antes do comando do tutor (acesso ao alimento, deslocamento durante passeios, dentre outros), pois somente assim o cão enxergaria o humano como dominante na relação.2

O uso do termo “dominância” tem sido utilizado de forma inapropriada para caracterização de indivíduos no manejo comportamental de cães, como por exemplo, pela atribuição da “dominância” como um traço do caráter do indivíduo, e não como parte das relações sociais, facilitando assim a percepção de que o animal busca a todo custo elevar a sua classificação dentro de um grupo social e que é necessário o uso de técnicas de treinamento coercivas para que este individuo não alcance tal “status”.4

No entanto, os estudos para a formulação do conceito dominância foram baseados em um modelo desatualizado nos anos 1970 sobre a organização de matilha de lobos, observando lobos de cativeiro fora do seu ambiente natural, tendo sido posteriormente revisado e a conclusão foi que a matilha típica é uma família, com os pais adultos orientando as atividades do grupo em um sistema de divisão do trabalho em que predomina a fêmea principalmente em atividades como cuidados e defesa de filhotes e o macho principalmente durante a procura de alimentos e fornecimento de alimentos e as viagens associadas a eles19.

Infelizmente, essa teoria foi suficiente para justificar durante muito tempo o uso de técnicas de treinos utilizando reforço negativo e punição positiva5, tais como as correções através do alpha roll, em que a pessoa se coloca em posição superior ao cão, causando

um estímulo de controle físico, geralmente na região do pescoço, técnica amplamente divulgada em programas televisivos. Outras técnicas que visam a correção, também bastante divulgadas incluem os borrifadores de água (spray, mangueira), guizos ou instrumentos de intervenção sonora (lata com moedas, por exemplo), intervenção física (enforcadores ou guias unificadas, punições físicas, coleiras de choques, etc.); dentre outros.

Muitos fatores estão associados à escolha de métodos coercivos e ferramentas aversivas de treinamento, tais como o nível de educação do treinador, o sucesso prévio com os métodos ao conjunto individual de costumes e também aspectos de moral e ética do envolvido.26 Mesmo trazendo resultados observáveis para algumas questões comportamentais, não existe evidência de que a utilização de punição positiva é mais efetiva do que treino baseado em reforço positivo. Entretanto, existe evidência científica de que o oposto é verdadeiro, como já citado ao longo deste texto.

Vale destacar que o processo de modificação comportamental deve considerar o estado emocional e as possíveis causas do comportamento observado, e não apenas a supressão do comportamento em si.

Treinamentos baseados em punição positiva possuem correlação com um maior número de problemas comportamentais do que treinamentos baseados em recompensas. Em adição, os melhores números voltados para obediência foram reportados por tutores que usavam treinamento à base de recompensas, seguido por aqueles que usavam combinação de recompensas e punição e, por último, por aqueles que utilizavam somente punição.26

Quanto à punição negativa, ou seja, a retirada de um estímulo agradável diante do comportamento indesejado, seu uso como parte das técnicas de terapia comportamental deve ser cauteloso. Apesar de não ser considerada uma técnica coerciva 21, efeitos como frustração podem ocorrer.

Cabe ressaltar que, no caso da atuação do médico veterinário e zootecnista na prevenção de maus-tratos, como elege a resolução n.o 1.236/2018 do CFMV, pode-se considerar maus-tratos o ato de submeter ou obrigar animal a atividades que ameacem sua condição psicológica, para obter esforços ou comportamentos que não se observariam senão sob medidas coercivas. Legislações municipais e estaduais também podem conter em sua estrutura considerações importantes de métodos comportamentais que são considerados como maus-tratos, sendo de importância a consulta pelos profissionais em suas práticas.

Considerando todos esses fatores, tais métodos são a primeira opção de uso para os profissionais que trabalham guiados por princípios de bem-estar da família multiespécie e atualização contínua do conhecimento técnico-científico.

REFERÊNCIAS

1 ARHANT, C., BUBNA-LITTITZ, H., BARTELS, A., FUTSCHIK, A., TROXLER, J. Behaviour of smaller and larger dogs: Effects of training methods, inconsistency of owner behaviour and level of engagement in activities with the dog. Applied Animal Behaviour Science, v. 123, p. 131-142, 2010.

2 BEAVER, B.V. Desenvolvimento e Distúrbios do Comportamento. IN: HOSKINS, J.D. (ed.) Pediatria Veterinária: cães e gatos do nascimento aos seis meses. 2. ed. Rio de Janeiro: Interlivros editora, 1997, p. 22-32.

3 BLACKWELL, E.J., TWELLS, C., SEAWRIGHT, A., CASEY, R.A.. The relationship between training methods and the occurrence of behavior problems, as reported by owners, in a population of domestic dogs. Journal of Veterinary Behavior, v. 3, p. 207- 217, 2008.

4 BRADSHAW, J.W.S., BLACKWELL, E.J., CASEY, R.A. Dominance in domestic dogs—useful construct or bad habit? Journal of Veterinary Behavior, 2009.

5 BRADSHAW, J.W.S., BLACKWELL, E-J., CASEY, R.A. Dominance in domestic dogs: A response to Schilder et al. (2014). Journal of Veterinary Behavior, p. 1-7, 2015.

6 CAPELARI, A., HUNZIKER, M.H.L. Aprendizagem de fuga após estímulos apetitivos incontroláveis. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 21, n. 1, p. 99-107, 2005.

7 CASEY, R.A., LOFTUS, B., BOLSTER, C., RICHARDS, G.J., BLACKWELL, E.J. Inter-dog aggression in a UK owner survey: prevalence, co-occurrence in different contexts and risk factors. Veterinary Record, p.172-127, 2013.

8 CASEY, R.A., LOFTUS, B.A., BOLSTER, C., RICHARDS, G.J., BLACKWELL, E.J. Humandirected 577 aggression in domestic dogs (Canis familiaris): Occurrence in differentcontextsandrisk 578 factors. Applied Animal Behaviour Science, v. 152, p. 52- 63, 2014.

9 CEBALLOS, Maria Camila; SANT’ANNA, Aline Cristina. Evolução da ciência do bem-estar animal: Aspectos conceituais e metodológicos. Rev. Acad. Cienc. Anim, v. 16, p. 1-24, 2018.

10 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Resolução no 1.236, de 26 de outubro de 2018. Define e caracteriza crueldade, abuso e maus-tratos contra animais vertebrados, dispõe sobre a conduta de médicos veterinários e zootecnistas e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 29 de outubro de 2018. Disponível em: <http://portal.cfmv.gov.br/lei/index/id/903>. Acesso em 22 de agosto de 2019.

11 COOPER, J.J., CRACKNELL, N., HARDIMAN, J., WRIGHT, H., MILLS, D. The welfare consequences 584 and efficacy of training pet dogs with remote electronic training collars in comparison to 585 reward based training. PLOS ONE, v. 9, 2014.

12 DELDALLE, S., GAUNET, F. Effectsof2 training methods on stress-related behaviors of the dog (Canis familiaris) and on the dog owner relationship. Journal of Veterinary Behavior, n. 9, p. 58-65, 2014.

13 HAVERBEKE, A., LAPORTE, B., DEPIEREUX, E., GIFFROY, J.-M., DIEDERICH, C. Training methods of military dog handlers and their effects on the team’s performances. Applied Animal Behaviour Science, v. 113, p. 110-122, 2008.

14 HERRON, M.E., SHOFER, F.S., REISNER, I.R. Survey of the use and out come of confrontational and non-confrontational training methods in client-owned dogs showing undesired behaviors. Applied Animal Behaviour Science, v. 117, p. 47-54, 2009.

15 HIBY, E.F., ROONEY, N.J., BRADSHAW, J.W.S. Dog training methods: their use, effectiveness and interaction with behaviour and welfare. Animal Welfare, v. 13, p. 63- 69, 2004.

16 HUNZIKER, M.H.L. Afinal, o que é controle aversivo? Acta comportamentalia, v. 19, n. 4, 2011.

17 INNES, L., MCBRIDE, S. Negative versus positive reinforcement: An evaluation of training strategies for rehabilitated horses. Applied Animal Behaviour Science, v. 112, n. 3–4, p. 357-368, 2008.

18 MAYER, P.C.M., GONGORA, M.A.N. Duas formulações comportamentais de punição: definição, explicação e algumas implicações. Acta comportamentalia, v.19, n.4, p. 47-63, 2011.

19 MECH, L. D., Alpha status, dominance, and division of labor in wolf packs. USGS Northern Prairie Wildlife Research Center. 353, 1999.

20 MOREIRA, M.B., MEDEIROS, C.A. Princípios Básicos de Análise do Comportamento. Porto Alegre: Artmed, p. 117-135, 2006.

21 PERONE, M. Negative Effects of Positive Reinforcement. The BehaviorAnalyst , v. 26, p. 1-14, n. 1, 2003.

22 ROONEY, N.J., COWAN, S. Training methods and owner–dog interactions: Links with dog behaviour and learning ability. Applied Animal Behaviour Science, v. 132, p. 169-177, 2011.

23 SANTOS, E.L.N., LEITE, F.L. A distinção entre reforçamentos positivo e negativo em livros de ensino de análise do comportamento. Revista Perspectivas, v. 4, n.1, p. 009- 018, 2013.

24 SCHILDER, M.B.H., VAN DER BORG, J.M. Training dogs with help of the shock collar: Short and long term behavioural effects. Applied Animal Behaviour Science, v. 85, p. 319-334, 2004.

25 VIEIRA DE CASTRO, A.C., FUCHS, D., MORELLO, G.M., PASTUR, S., SOUSA, L., OLSSON, I.A.S. Does training method matter? Evidence for the negative impact of aversive-based methods on companion dog welfare. PLoS ONE, v. 15, n. 12, 2020.

26 ZIV, G. The effects of using aversive training methods in dogs—A review. Journal of Veterinary Behavior, v. 19, p. 50-60, 2017.